Notícias  09 de Julho 2019

Redutos de flora da Lagoa de Óbidos

Redutos de flora da Lagoa de Óbidos

O Centro de Interpretação para a Lagoa de Óbidos acolheu mais um passeio guiado, desta vez dedicada à botânica.

O Centro de Interpretação para a Lagoa de Óbidos acolheu mais um passeio guiado, desta vez dedicado à botânica. Paulo J. Lemos, naturalista investigador, guiou-nos ao longo de dois percursos pedestres no Vau, junto à Lagoa de Óbidos, para observação de exemplares de flora rara, como a planta carnívora Pinguicula lusitanica, da família Lentibulariaceae.

Da parte da manhã, rumámos em direção à Poça do Vau. O primeiro ponto de paragem foi junto a um charco temporário, que faria outrora parte desta poça, onde foi abordada a importância deste tipo de habitat para as diferentes formas de vida de fauna e de flora, extremamente adaptadas à modelação sazonal destes meios.

No seu solo seco ou lamacento, parcialmente coberto de vegetação helófita e herbáceas, encontravam-se já latentes plantas como o Myriophyllum alterniflorum e o raro Ranunculus sceleratus. Ainda floresciam os últimos ranúnculos-aquáticos (Ranunculus peltatus), na sua forma terrestre.

Ranúnculos-aquáticos (Ranunculus peltatus).

As margens deste tipo de charcos eram outrora regularmente visitadas pelo gado que, ao consumir determinadas plantas, assim contribuía para diminuir o volume de matéria orgânica em decomposição nas águas após as primeiras chuvadas de outono. A diminuição do número de pastores e, consequentemente, de gado na região, juntamente com outros fatores que levaram a que este charco fosse cada vez mais seco e reduzido, colocam em risco a continuidade deste pequeno oásis e da diversidade de espécies que hoje lhe conhecemos.

Do lado deste charco temporário, na Poça do Vau, onde ainda se puderam encontrar espécies relativamente raras. A destacar Oenanthe fistulosa, espécies do género Galium, entre relvados de gramíneas muito resilientes e prolíficas, perfeitamente adaptadas ao pastoreio, tais como Agrostis e Hordeum spp, destacando-se também o Hordeum secalinum pela sua beleza e invulgaridade.

Oenanthe fistulosa.

Rumo ao leito seco da grande Poça do Vau encontrou-se uma diversidade de gafanhotos e outros insetos, alguns dos quais, a par com o gado, exercem pressão sobre as espécies mais resistentes de juncais e relvados. Por exemplo, o Conocephalus fuscus (nutre-se essencialmente de sementes de juncos), o Decorana decorata (alimenta-se essencialmente de sementes de gramíneas), e devoradores de folhas tenras como o Paracinema tricolor.

Conocephalus fuscus.

Decorana decorata.

Paracinema tricolor.

Chegados ao leito ressequido da Poça do Vau, observaram-se os invulgares Crypsis aculeata e Crypsis schoenoides, pequenas plantas típicas destes ambientes temporários.

Devido à crescente falta de água na grande área, em parte devido a obras de drenagem e da elevada demanda agrícola, estas plantas crescem hoje no centro da poça totalmente ressequida, em vez de se limitarem às margens secas na periferia da água.

No fim do percurso circular em volta da Poça do Vau, foram também apreciados redutos de Sapal muito a montante do espelho de água da Lagoa de Óbidos, pontos que ainda conservam algumas das suas espécies mais características como a Salicornia ramosissima. Sinal de que as margens da Lagoa de Óbidos teriam ali chegado, num passado não muito distante.

Salicornia ramosissima.

Depois de um descanso merecido, a tarde começou com uma apresentação sobre a "flora ameaçada da Lagoa de Óbidos", com foco em espécies palustres e aquáticas.

Foram apresentadas algumas amostras, previamente recolhidas no período em que o guia Paulo J. Lemos foi colaborador para a Lista Vermelha (LV) da Flora Vascular de Portugal Continental.

Com base em conhecimento de campo e nos dados históricos fornecidos pela equipa (dados por vezes datados de quase um século), pode-se dizer com elevada segurança que há plantas extintas na Lagoa de Óbidos e que, em certos casos, o estatuto é provavelmente válido para o resto do país.

Desapareceram espécies de águas permanentes pouco profundas, como o Hydrocharis morsus ranae, provavelmente outrora presente na Poça do Vau, e espécies de águas limpas de leitos pouco mexidos, como o Potamogeton lucens.

Outras vão-se tornando regionalmente raras, como por exemplo o Potamogeton natans e uma planta insectívora aquática classificada como Vulnerável para LV, a Utricularia australis, ambas mostradas na apresentação, e que atualmente contam com localização única conhecida para cada uma na região.

Potamogeton natans.

Utricularia australis.

Também estão desaparecidas plantas de solos húmidos como a Dactylorhiza elata/incarnata, consequência da regressão e da degradação dos ambientes palustres da Lagoa de Óbidos.

Em contrapartida, na região foram encontradas espécies até aqui desconhecidas para a flora local e nacional, como o Ceratophyllum submersum e o Potamogeton coloratus, encontrando-se este último na categoria "Em Perigo", sendo uma planta característica de nascentes, lagunas e turfeiras em águas carbonatadas.

Ceratophyllum submersum.

Foram também descobertos núcleos importantes de Margaração-das-valas (Leucanthemum lacustre) e de Lysimachia ephemerum, em cantinhos pouco perturbados, e às vezes acompanhados de comunidades vegetais únicas, sensíveis, e recheadas de outras mais raridades.

Certas espécies em avaliação, revelaram-se mais abundantes do que se pensava (não significando que ganharam terreno até à atualidade, mas que apenas eram mal conhecidas), tendo havido pelo menos uma espécie detectada pela primeira vez nas margens da lagoa, o Limonium plurisquamatum, que sobreviveu miraculosamente numa zona intocada aquando da vasta deposição de dragados, que deu origem às dunas artificiais hoje existentes na margem sul.

No final da apresentação foi mostrado um pequeno exemplo de micro-habitat sensível, que contempla a insectívora Drosera intermedia, que urge proteger.

Acabada a apresentação, partimos do Braço do Bom Sucesso para um dos raros ameais da Lagoa de Óbidos, para dar início ao percurso pedestre da tarde.

E logo nos aventurámos por trilhos de terra batida, no vale ripícola mais a montante do Braço do Bom Sucesso, junto à desembocadura de uma das pequenas linhas de água que perfaziam uma outrora abundante bacia de drenagem da Lagoa de Óbidos. Neste caso, a linha atravessa uma grande extensão de relevos em solos sobretudo arenosos, do Concelho de Óbidos.

No início deste percurso espreitámos, por entre grandes salgueiros e sobreiros, uma grande área pantanosa inacessível dominada por grandes tufos de Carex paniculata (entre os quais flutuavam Potamogeton polygonifolius, e pudemos compará-las então com as amostras de Potamogeton natans, destinadas à apresentação da flora local ameaçada).

Comparativo entre Potamogeton polygonofolius e Potamogeton natans.

Na berma oposta à zona pantanosa, prolongava-se um talude sob misto de eucaliptal e de Pinhal, sob os quais confirmámos espécies ainda presentes de matos húmidos, provas de que a água ali esteve bem representada num passado não muito distante.

O cenário repetiu-se ao longo de quase todo o percurso da tarde, onde não deixámos de apreciar plantas como a Erica ciliaris, a Molinia caerulea, e o Ulex minor, espécies que apesar de sobreviverem em ambientes mais secos, são características por se propagarem em superiores condições de humidade. Uma das mais apreciadoras de humidade, a Erica lusitanica, encontra-se já muito raramente nas encostas, limitando-se às zonas de matagal e floresta mais antigos, estando hoje sobretudo presente em zonas marginais das várzeas cultivadas, sugerindo que as sementes ali foram parar aquando das últimas manutenções de vala, quando abundavam, escorrências, matos húmidos e floresta nativa nas encostas.

Erica ciliaris.

Ao longo da caminhada atingimos escassos pontos onde ainda escorre humidade, coincidentes à ocupação por espécies nativas como sobreiros, medronheiros e sanguinhos, entre urzais. Há flora cada vez mais rara que são hoje escassos pontos húmidos, por vezes limitados às bermas de antigos acessos pouco alterados, ou associados a velhos troncos de árvores. Espécies como o Peucedanum lancifolium, a Pinguicula lusitanica (insectívora), a Hydrocotyle vulgaris, o Hypericum elodes, musgos interessantes como Sphagnum auriculatum, e a gramínea ameaçada Agrostis juressi. Também nos mais velhos taludes sombreados por velho coberto florestal, encontrámos redutos de Luzula forsteri, e do endémico e gigantesco Margação-das-valas, uma planta magnífica que infelizmente ainda não se encontrava florida!

Pinguicula lusitanica (insectívora).

Hypericum elodes.

Margação-das-valas (Leucanthemum lacustre).

Na volta de um percurso maioritariamente circular, pudemos finalmente apreciar o ambiente fresco e luxuriante dos salgueirais palustres, pontualmente de aspeto climácico e cobertos de heras no solo. Havia vários trechos de trilho ladeados pelo raro Cheirolophus uliginosus!

Cheirolophus uliginosus.

Também aqui contrasta o ambiente nas bermas, uma delas integralmente coberta de densas monoculturas de eucalipto, pontualmente também invadida por acácias, com escassos redutos dos matos húmidos que lhe eram característicos. Destaque para uma turfeira bastante degradada, que visitámos entre uma faixa de gestão de combustível (linha elétrica) ladeada por eucaliptais gradados. Foi possível observar plantas intactas de Cirsium welwitschii, uma espécie endémica de Portugal Continental avaliada como Em Perigo de extinção.

Cirsium welwitschii.

Já no final do percurso, observou-se uns dos poucos exemplares de pereira-brava (Pyrus bourgaeana), mesmo à beira da estrada.

Muitos destes habitats, um pouco por toda a região Oeste, têm vindo a diminuir, levando ao desaparecimento de uma grande diversidade de espécies de flora e fauna, incluindo espécies ameaçadas.

Este tipo de atividades são assim um importante instrumento para dar a conhecer a vida associada a este tipo de habitats e despertar para a sua preservação.

O nosso agradecimento ao guia Paulo J. Lemos e a todos os participantes pelo seu envolvimento, entusiasmo e boa disposição!